O país virou um mar de lama e fogo. Lama inflamável como se fosse magna vulcânica vinda de algum lugar próximo – um Vesúvio aqui mesmo, de tamanho colossal.
Nada de “ira dos deuses” como supunham os povos antigos, mas coisa dos nossos semideuses falidos, os que obram desastres no lugar de milagres prometidos. Coisa também da crendice popular e do estado de letargia coletiva, que não impedem a marcha dos semeadores do caos.
Enfim, por conta da incapacidade do povo e de sua lerda indignação frente aos grandes desastres humanos, o fogo vai se alastrando, enquanto marginais incendiários continuam atiçando faíscas sobre materiais inflamáveis. Pensam mais ou menos assim : ou todos se submetem ao nosso jugo no inferno, ou seremos queimados todos juntos na terra.
É obra arrasadora de auto-extermínio de um povo que perdeu seus brios e não tem mais referências de valores morais e sociais, e nem sabe quando e a quem pedir socorro, porque também não foi capaz de formar líderes de salvação nacional, aqueles que em hora de grande crise apontam caminhos e soluções.
Que líder sobrou dessa explosão vulcânica apocalíptica que manchou de preto a reputação de santos inventados pela crença popular; queimou a biografia de figuras ilustradas, condestáveis da moralidade; tisnou a toga dos deuses da justiça; impregnou de fedentina toda a elite política e administrativa dirigente e deixou uma nação inteira à mercê de saqueadores e bandoleiros travestidos de autoridades ?
Que país sobra debaixo dessas nuvens de cinza vulcânica que impedem um olhar esperançoso ao futuro, quando agentes da destruição continuam jogando combustível sobre as chamas com o intuito de não serem cobrados e nem condenados pelos crimes cometidos contra o povo ?
Para onde vamos envoltos nessa fumaça negra e tóxica, nessa fuligem envenenada que eclipsia o horizonte e polui o meio ambiente e a convivência social e impede a continuidade de uma vida digna e saudável, em uma sociedade que não tem a culpa capital pela tragédia que sofre ?
A morte de Marielle Franco, socióloga, negra, ativista social, militante partidária das esquerdas brasileiras, é parte desse vulcão enfurecido que queima corpos e incinera almas de brasileiros em qualquer lugar do país neste momento, não apenas no Rio de Janeiro. É lava incandescente a mais no Vesúvio assassino que, descontrolado e irado, se atira sobre a população indefesa em forma de tragédia dantesca, só poupando ainda – e isso é outra tragédia à parte – os que lhe atiçam mais fagulhas incendiárias.
Marielle tem origem em Alagoa Grande, terra de Margarida Maria Alves, a mais imponente líder camponesa na luta por terra no Brasil dos anos 1970/80, cabocla valente do interior do país que cunhou a frase-símbolo e célebre para os povos oprimidos do mundo : “ é melhor morrer lutando do que morrer de fome “ . Fosse hoje, diante desses movimentos políticos que ajudou a fundar, talvez pudesse dizer : é melhor não viver do que morrer de fome moral.
Margarida teve o seu cadáver usado durante anos nos carnavais políticos do lulopetismo, até que tomassem o poder sepultando-a em terra rasa. Agora é Marielle, filha de conterrânea sua, que tem o seu esquife colocado em carro alegórico das manifestações político-ideológicas nesses repetidos enredos decadentes, cujo objetivo maior é desviar a atenção dos crimes e criminosos caçados pelas volantes políciais e pela justiça. Em redor do caixão,choram as mesmas carpideiras profissionais que precisam de defuntos para manter a pose e preservar conquistas pessoais escusas e macabras.
Tudo hoje faz parte do confronto entre a esquerda e a
direita no espectro político nacional, as duas facções delinquentes que estavam unidas até 2015, quando arrombavam em conluio os cofres públicos do Brasil – gora separados circunstancialmente por causa da guerra travada na divisão dos assaltos – mas uma facção acusando a outra de traição e golpe. São como hienas, que transformam cadáveres de mulheres em proteínas de sobrevivência.
Pobre e grandiosa Marielle, bonita, charmosa, destemida e mártir das favelas e dos antros criminosos do Rio de Janeiro, o território livre do banditismo institucional, terra sem lei e sem autoridade, controlado pelo medo e pela conscupiscência política, neste instante exportando fascínoras de todas as espécies e o veneno das ideologias moribundas, estas sedentas de defuntos vivos e mortos.
Marielle,que não era nem de longe mais importante do que fora a juíza Patrícia Acioli, tragicamente morta pelos grupos de extermínio que reprimia no Rio, numa madrugada de agosto de 2011, aos 46 nos, tem ao menos o privilégio póstumo de ser usada como bandeira política da esquerda brasileira agonizante. Patrícia foi mártir de um judiciário que também agoniza quando tentava proteger a sociedade e o Estado, mas nunca recebeu o reconhecimento de sua própria instituição, que só se mobiliza quando é para manter privilégios ou preservar gambiarras salariais exorbitantes e afrontosas a outros servidores públicos sem castas.
Marielle Franco transformou-se na sua tragicidade em escudo disposto a barrar a qualquer custo a solução militar intervencionista destinada a debelar o caos no Rio de Janeiro, porque a operação de guerra pode sugerir mais tarde um caminho político drástico para a crise de governabilidade e de vergonha que domina o cenário administrativo do país como um todo, ante o fracasso das utopias e do descalabro moral da experiência lulopetista de gestão pública.
Pobre e desditada Marielle ! Morreu sem saber o quanto valia o seu cadáver – milhões de vezes mais do que valia em vida – para os abutres e carniceiros que precisam de esquifes para substituir líderes insepultos e ideias arquejantes. É mais uma vítima do meio em que vivia , mas certamente queria algo melhor do que teve e do que estão lhe reservando nesse carnaval fúnebre, ideologicamente desumano, oportunista e utilitarista.