Sumário : 1. Introdução. 2. Origem do instituto. 3. Aplicação no Direito norte-americano. 4. Aplicação no Direito brasileiro. 5. Pressupostos fáticos de aplicabilidade do instituto pelo judiciário. 6. Conclusão.
“O espirito do comércio produz nos homens um acentuado sentido de justiça exata, oposto de um lado à rapinagem e de outro à negligência dos próprios interesses.” (Montesquieu).
1. INTRODUÇÃO
Desde priscas eras que o mundo jurídico, e porque não dizer o mundo dos negócios vem se preocupando com o crescente número de fraudes perpetradas por inescrupulosos encobertos sob o manto da incomunicabilidade da personalidade da pessoa jurídica, com a do sócio ou diretor. Não são raros os casos em que uma pessoa abre uma firma fictícia em nome de interposta pessoa – “laranja”-, ficando por trás da empresa, munido de uma procuração Pública com poderes amplos e ilimitados de gestão, passando então a aplicar os mais variados golpes na praça, de modo que, uma vez executada a empresa, descobre-se que a mesma só existe de direito, mas de fato não passa do que se convencionou chamar de “fantasma”, desprovida de qualquer patrimônio garantidor de suas dívidas, geralmente contraídas pelo espertalhão gestor, mas que na verdade é o seu mentor e proprietário, beneficiário maior das vultosas quantias desviadas em prol de seu patrimônio inalcançado quando do acionamento judicial da empresa “fantasma”, face à proibição explicita no comando normativo do artigo 50 do atual Código Civil, e art. 28 do Código de Defesa do Consumidor. Foi com essa preocupação e, face à necessidade de se encontrar mecanismos de defesa, que se inseriu no mundo jurídico a teoria da “desconsideração da pessoa jurídica”, também conhecida como “disregard doctrine”, ou ainda, como chamam os argentinos, “teoria de la penetración”
2. ORIGEM DO INSTITUTO
A desconsideração da pessoa jurídica é indubitavelmente uma das mais revolucionárias e expressivas tendências experimentadas pelo Direito, no século XX. O mundo jurídico rende homenagens à sistematização do tema, aos estudos desenvolvidos pelo alemão Rolf Serick, em monografia através da qual concorreu pela docência da Universidade de Tubigem, na década de 1950. Todavia, foi dentro do sistema jurídico anglo-americano que surgiu as primeiras manifestações que levaram à teoria da “disregard of legal entity”, ou como alguns preferem chamá-la “disregard doctrine”, através da qual, o juiz pode, em casos concretos, desconsiderar a pessoa jurídica em relação à pessoa de quem se oculta sobre ela e que a utiliza fraudulentamente.
3. APLICAÇÃO NO DIREITO NORTE–AMERICANO
Nos Estados Unidos da América do Norte, a “Disregard of legal entity”, se consolidou, ingressando na legislação daquele povo de forma definida e esquematizada. Concedeu, ela aos juizes norte-americanos, a ferramenta necessária e suficiente para atingir a responsabilidade pessoal de empresários aventureiros, quando viessem a causar prejuizos a outrem em benefício próprio, utilizando-se para tanto de uma pessoa jurídica que lhe pertencia. O Jurista norte-americano Wormser, no ano de 1912, procurando externar um conceito para o instituto, já professava com muita propriedade que, “quando o conceito de pessoa jurídica (corporate entity) se emprega para defraudar os credores, para subtrair-se a uma obrigação existente, para desviar a aplicação da lei, para constitui ou conservar monopólio ou para proteger velhacos ou delinqüentes, os tribunais poderão prescindir da personalidade jurídica e considerar que a sociedade é um conjunto de homens que participam ativamente de tais atos e farão justiça entre pessoas reais”. Hodiernamente, os tribunais norte-americanos, ampliaram o conceito, aplicando o instituto quando a consideração da pessoa jurídica levar a um desfecho injusto. Partindo, assim, do conceito de fraude, conforme a concepção de Wormser alargou-o, para alcançar da mesma forma as situações em que porventura ocorrer “abuso de direito”.
4. A APLICAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO
Na doutrina pátria, coube ao comercialista Rubens Requião, [1] pioneiramente abordar o tema entre nós, em conferência realizada na Faculdade de Direito da Universidade do Paraná, publicada, posteriormente na RT 410/12. Merece também ser referenciados os trabalhos doutrinários publicados por Lamartine Corrêa de Oliveira[2], e por Fábio Ulhoa Coelho[3]. O instituto em comento foi recepcionado pela legislação especifica, em diferentes áreas. A antiga Lei das Sociedades Anônimas (DL 2.627 de 1940) individualiza a responsabilidade dos seus administradores quando agem com dolo, culpa ou com violação da lei ou dos estatutos (art. 121). Por outro lado, o comando do artigo 158 da atual Lei das Sociedades Anônimas (Lei Nº 6.404 de 15.12.76), igualmente estabelece que o administrador, responde, civilmente pelos prejuizos que causar na gestão da empresa, quando proceder com culpa ou dolo, ou com violação da lei ou estatuto. No Código Tributário Nacional, (Lei Nº 5.172/66), encontramos no comando do artigo 134, VII, que “os sócios em casos de liquidação da sociedade de pessoas, respondem solidariamente pelos débitos fiscais da empresa”. Igualmente, os gerentes, diretores ou representantes das pessoas jurídicas de direito privado são pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias, resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatuto (cf. art. 135, II). Esxurge, forte ainda, no artigo 18 da Lei do Abuso do Poder Econômico (Lei Nº 8.884/94; sendo também recepcionada pelo Código de Defesa do Consumidor ao comandar em seu artigo 28 “verbis”:
“Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocada por má administração.”
E também no atual Código Civil em seu artigo 50 (art. 20 do CC/16), ao comandar:
“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte ou do Ministério Público quando couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.
A jurisprudência nacional, inobstante ainda ser escassa sobre o tema, mas, forçoso é reconhecer-se, que, paulatinamente vem se firmando na recepção do instituto. Tanto é assim, que o Supremo Tribunal Federal, ao dirimir querela sobre o poder da “holding” em relação à alienação de ações da subsidiária, invocou a doutrina americana da desconsideração da pessoa jurídica (cf. RE 88.591, RTJ 93/320). Também, julgando o RHC 54.411, reconheceu a responsabilidade do diretor de fato que se oculta atrás da nomeação de “homem-de-palha” para o cargo de diretor, o que, evidentemente, nada tem a ver com a “disregard doctrine”, mas que serve para demonstrar que mesmo no Brasil a disposição prevista no artigo 50 do Código Civil (art. 20, caput, do Códex Civil de 1916), não é absoluta, principalmente quando ocorrer fraude, tanto que o Pretório Excelso, nesse caso, transferiu a responsabilidade para o autor da fraude (RTJ 78/752).[4] Indubitavelmente, na hipótese, o STF, aplicou ao caso a teoria norte-americana da “dummy corporation”.
5. PRESSUPOSTOS DE APLICABILIDADE DA DOUTRINA PELO JUDICIÁRIO.
“A disregard doctrine”, como já se disse linhas supra, surgiu da necessidade de se encontrar mecanismos de proteção, contra o mau uso da sociedade mercantil. A autonomia patrimonial decorrente do comando do artigo 20 do Código Civil, ou seja, a dualidade da personalidade jurídica da sociedade mercantil e de seu sócio tem sido explorada para a manipulação de fraudes várias ou abuso de direito. Quando tal acontece, outro caminho não há que não seja a desconsideração da pessoa jurídica para se alcançar o fraudador ou abusador do direito. Os casos de aplicação do instituto são ainda ampliados, na hipótese de falências, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da sociedade mercantil, tudo provocado por má administração. É bem verdade, que a legislação pertinente ao instituto, mas precisamente o comando normativo do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, refere-se apenas à situação em que a vítima seja um consumidor, ou quando se cuidar de crime contra a ordem econômica. Todavia, o aplicador do direito, pelo princípio da analogia e, obedecido o Due Process of law, pode estender a desconsideração da personalidade jurídica para outras áreas similares, e até mesmo em situações falimentares. De bom alvitre lembrar, que a aplicação da “disregard doctrine”, não é regra absoluta, pois encontra limites quando do exercício da atividade jurisdicional. É o que leciona Fábio Ulhoa Coelho, ao discorrer que, “somente quando a pessoa jurídica for utilizada para a realização de uma fraude ou abuso de direito é que o juiz está autorizado a ignorá-la. O simples prejuízo de terceiros em razão da limitação da responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais nunca será por si só, fundamento para a desconsideração. Sem elemento subjetivo, intencional, destinado a ocultar a ilicitude atrás da pessoa jurídica, não há como superar a autonomia patrimonial que a caracterize. Se inexiste fraude ou abuso de direito, a personalização da sociedade, associação ou fundação deve ser amplamente prestigiada.[5] Não é diferente o pensamento de Rubens Requião, para quem, “diante do abuso de direito” e da fraude no uso da personalidade jurídica, o juiz brasileiro tem o direito de indagar, em seu livre convencimento, se há de consagrar a fraude ou abuso de direito, ou se deve desprezar a personalidade jurídica, para, penetrando em seu âmago, alcançar as pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos e abusivos.[6] Outro pressuposto a ser observado na aplicação do instituto, é o fato de que no caso concreto não há supressão da sociedade, nem tão pouco se considera ela nula. Apenas, em casos especiais, declara-se ineficaz determinado ato, ou se regula a questão de modo diverso das regras habituais, dando mais realce à pessoa do sócio ou gestor do que à sociedade. O atual Código de Processo Civil recepcionou em seus artigos 133 a 137, o instituto sob o titulo de Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica, traçando o legislador o norte a ser seguido pelo juízo na aplicação do instituto, bem assim definindo quem tem legitimidade e interesse para requerer a instauração do incidente, incluindo aí o Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.
6. CONCLUSÃO
De acordo com os ensinamentos doutrinários, a legislação e, a jurisprudência aplicável ao tema em comento se pode concluir que: a) A “disregard of legal entity” é de grande alcance e eficiência para impedir o abuso e as fraudes lato sensu; b) O instituto deve ser aplicado apenas nos casos concretos; c) Só deve ser invocada quando os sócios e/ou gestores utilizarem a sociedade com má-fé, comprovando-se a fraude ou abuso de direito ou ainda afronta à lei; d) A responsabilidade do sócio na aplicação do instituto é ilimitada.
7. BIBLIOGRAFIA:
FÁBIO ULHOA COELHO – A desconsideração da Personalidade Jurídica – Forense: São Paulo, 1989.
LAMARTINE CORREIA OLIVEIRA – A Dupla Face da Pessoa Jurídica – Saraiva: São Paulo.
LAURO LIMBORÇO – “Disregard Of Legal Entity”. RT 579, p.27.
RUBENS REQUIÃO – Aspectos Modernos de Direito Comercial – Saraiva: São Paulo, 1977. 1 REQUIÃO, Rubens. – Aspectos Modernos de Direito Comercial – Saraiva -, São Paulo, 1977. [2] OLIVEIRA, Lamartine Corrêa. – A dupla face da pessoa jurídica – Saraiva -, São Paulo. [3] COELHO, Fábio Ulhoa. – A desconsideração da Personalidade Jurídica – Revista dos Tribunais -, Forense, São Paulo, 1989. [4] LIMBORÇO, Lauro – “DISREGARD OF LEGAL ENTITY” – Artigo publicado na RT – 579 , p. 27.
[5][5] COELHO, Fábio Ulhoa – A desconsideração da Personalidade Jurídica – Forense – São Paulo, 1989. [6] REQUIÃO, Rubens – Aspectos Modernos de Direito Comercial, p. 70 – Saraiva -, São Paulo, 1977.
Josivaldo Félix de Oliveira Juiz de Direito – Professor Universitário – Especialista em Direito Civil
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