A crônica “Eu sei, mas não devia”, publicada no Jornal do Brasil, em 1972, pela ítalo-brasileira nascida na então colônia italiana da Eritreia , Marina Colasanti, continua nos cativando até hoje, mas aqui vou me atrever adaptar para esses dias dramáticos de pandemia.
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
Adaptação: *Renato Cunha Lima Filho*
A gente se acostuma a ficar longe dos nossos idosos nesta quarentena que já dura um ano. E, porque não se visita, logo se acostuma a não receber visitas. E, porque não se recebe visitas, logo se acostuma a não visitar ninguém.
A gente se acostuma a usar máscara e não sermos mais reconhecidos na rua. A ir a qualquer lugar e passar álcool gel nas mãos. A ler notícias terríveis no celular dentro do ônibus lotado porque não pode perder o horário do trabalho. A fazer o prato com luvas de plástico e almoçar sozinho com medo de um espirro do vizinho. A sair do trabalho com pressa para fazer comprar antes do toque de recolher.
A gente se acostuma a ler e assistir as notícias sobre a pandemia. E, aceitando tudo, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nos remédios e nas vacinas. E, não acreditando nos remédios e nas vacinas, aceita ler e assistir todo dia a pandemia, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir uma notícia de uma falência, de um falecimento de um conhecido. A chorar sozinho sem poder ofertar o ombro amigo. A ser ignorado quando precisava tanto ser consolado.
A gente se acostuma a aceitar a truculência das autoridades que proíbem tudo o que deseja e o de que necessita. E desistimos de lutar para trabalhar e subsistir. E aceitamos a ajuda emergencial que é bem menos do que precisa. E a fazer fila para receber. E a pagar mais por tudo que fica mais caro. E a saber que cada vez vai se pagar mais. E a procurar trabalho, sem ter esperanças.
A gente se acostuma a andar nas ruas desertas com placas de vende-se e aluga-se. A abrir as revistas e ver notícias de corrupção. A ligar a televisão e assistir a contagem dos mortos. A ir por aí e engolir a publicidade mentirosa de governantes. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata das FakeNews.
A gente se acostuma à dor. Às lojas fechadas, as vidas perdidas. À luz artificial das prisões domiciliares. Ao choque que os olhos levam com a triste realidade. O vírus invisível a sua frente. À contaminação. À lenta morte dos sonhos.
Se acostuma a não ouvir boas músicas, a não ter alegria, a temer a a morte e a solidão, a não olhar mais a quem se ama.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o hospital está cheio, a gente reza sem poder ir na igreja. Se a praia está fechada, a gente só olha de longe enquanto sua o corpo.
Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando que não somos os que já foram demitidos. E se ainda respiramos a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar o vírus, a morte, para esquivar-se, para sobreviver.
A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.